Imunidade Constitucional – ITBI na relação de capital social através de bem imóvel sem ágio.
- Postado por Rute Endo
- Em 21/12/2022
- Introdução
Embora sua representatividade não seja tão expressiva, o ITBI é imposto que tem sido objeto de análise e discussão pelos Tribunais estaduais e também pelo STF, mais recentemente através do julgamento do leading case, RE n. 796.376/SC.
O presente texto trata apenas da incidência do ITBI sobre transmissões de bens imóveis a título de realização de capital social por alguém que figure como sócio(a).
Inicialmente, cabe ressaltar que a Constituição Federal dispõe em seu artigo 156, §2º, I sobre a imunidade de Imposto de Transmissão de Bens Imóveis Inter Vivos – ITBI nos atos que importem a transferência da propriedade de bens imóveis a uma pessoa jurídica por ato de realização de capital social de um dos sócios, independentemente da atividade da empresa na qual se pretenda integralizar o bem.
Entretanto, não há que se confundir a referida imunidade, com a exceção à referida imunidade, prevista na parte final do artigo retromencionado, conforme grifo:
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
[…]
II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;
[…]
§ 2º O imposto previsto no inciso II:
I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;
Resta evidente, a partir da leitura do dispositivo constitucional, que a exceção à regra da imunidade aplica-se tão somente a transferências de bens através de atos de transformação societária de fusão, cisão e incorporação de empresas cuja atividade preponderante seja imobiliária ou de arrendamento mercantil.
Necessária a leitura técnica do dispositivo constitucional, a qual nos leva ao exercício da hermenêutica jurídica, de um lado sintática e de outro axiológica.
A hermenêutica nos permite a análise das hipóteses envolvidas no dispositivo constitucional em tela, uma vez que sua determinação é necessária para, aliada à análise dos fatos jurídicos comprovados pelo Impetrante, entender ou não pela subsunção do fato à norma, cuja combinação daria ensejo à tributação, o que não se verifica no caso objeto do presente.
- Pressupostos para incidência de ITBI
O art. 156 da constituição Federal trata da competência municipal de tributar, listando as hipóteses em que isto é possível, das quais destacamos a competência de tributação de atos de transmissão onerosa inter vivos de bens imóveis (inciso II do art. 156 da CF/88).
Os pressupostos, portanto, do Imposto de Transmissão Inter-vivos são, cumulativamente: (i) transmissão de bens imóveis entre duas ou mais partes vivas; e (ii) a onerosidade do negócio jurídico que é causa da transmissão do bem. Ou seja, para que nasça o direito do Município de ITBI sobre um negócio jurídico, é necessário que haja tanto a transmissão de bens imóveis, quanto um ganho econômico dos agentes envolvidos, ou seja, o pagamento de preço.
No caso da realização de capital social por sócio através de bem imóvel sem ágio, não há o pagamento de preço, como ocorre em uma compra e venda, uma vez que o sócio entrega seu bem imóvel à Sociedade. Há, portanto, tão somente uma troca entre o bem imóvel e as cotas sociais em valores equivalentes. Não há preço recebido pelo sócio tampouco pela sociedade.
Importante abrir um parênteses na interpretação sintática do texto, para nos aprofundarmos sobre o objeto principal do Julgamento do caso paradigma pelo STF, que tratou da tributação do ágio equivalente a valor superior do bem imóvel àquele declarado para fins de integralização de capital. Vide abaixo ementa do referido caso:
EMENTA. CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI. IMUNIDADE PREVISTA NO ART. 156, § 2º, I DA CONSTITUIÇÃO. APLICABILIDADE ATÉ O LIMITE DO CAPITAL SOCIAL A SER INTEGRALIZADO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO. 1. A Constituição de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis, não incidindo o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica (art. 156, § 2º,). 2. A norma não imuniza qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, mas exclusivamente o pagamento, em bens ou direitos, que o sócio faz para integralização do capital social subscrito. Portanto, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI. 3. Recurso Extraordinário a que se nega provimento. Tema 796, fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”. (STF – RE: 796376 SC, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 05/08/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 25/08/2020)
Tal diferença, por avançar na equiparação entre valor das cotas subscritas e valor do bem com que foram integralizadas, o ágio, sim é fato gerador de tributo, dada a existência de ganho econômico, neste caso, da Sociedade.
Ao analisar a incidência do ITBI sobre o valor da diferença entre o capital subscrito e integralizado e o valor do bem imóvel, o STF consolidou o entendimento de que a imunidade constitucional em análise abrange toda realização de capital social através de bens imóveis em equiparação de valores entre si, sem condicioná-la, portanto.
- Da Competência de tributar e seus limites Constitucionais
Após atribuir competência ao Município de tributar negócios jurídicos e elencar os seus pressupostos, já trazendo implicitamente a não incidência do tributo sobre transações não onerosas e cujo objeto não seja bens imóveis e nem praticados causa mortis, o texto constitucional passa a expressamente listar fatos jurídicos imunes de incidência do tributo, quais sejam: (a) transmissão de bens imóveis dados em garantia; (b) transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica realização de capital de qualquer natureza; e (c) operações de transformações societárias através de fusão, cisão, incorporação ou extinção de pessoa jurídica.
Após tratar das imunidades supra elencadas, o texto constitucional prossegue trazendo, aí sim, uma exceção à imunidade prevista para operações de transformações societárias através de fusão, cisão, incorporação ou extinção de pessoa jurídica, descrita no item ‘c’ acima, para empresas envolvidas em tais operações de transformações societárias cuja atividade preponderante seja de compra e venda de bens imóveis e/ou direitos sobre estes, e atividade de arrendamento mercantil.
Entretanto, tal exceção, não alcança a regra de imunidade contida na primeira parte do §2o, para toda e qualquer operação de realização de capital social através de bem imóvel de valor equiparado ao capital subscrito.
- Interpretação Axiológica
Concluída a interpretação sintática do texto constitucional, adentramos à sua hermenêutica axiológica, uma vez que os princípios constitucionais devem ser levados em consideração pelo intérprete jurídico em razão de estarem hierarquicamente acima das normas não principiológicas, como é o caso do artigo em análise, embora seja um desdobramento daqueles, como se verá, e nas palavras de Norberto Bobbio, a análise isolada de dispositivo constitucional seria “considerar as árvores e não a floresta“.
É possível verificar que o dispositivo constitucional em estudo é um desdobramento do princípio de capacidade contributiva, o princípio da livre iniciativa, e da legalidade estrita, previstos, na mesma ordem: no art. 145, § 2º da Carta Magna e, previsto nos arts. 1º, IV, art. 5o, XIII e art. 170, parágrafo único e art. 150, I da Constituição Federal.
O princípio da capacidade contributiva é respeitado pela norma em estudo uma vez que um dos pressupostos de incidência do ITBI é a onerosidade do negócio jurídico. Ou seja, se não houver ganho econômico de nenhum dos participantes, mantida a sua neutralidade, não é permitido cobrar tributo.
O cumpirmento da norma permite também a aplicabilidade do princípio da livre iniciativa, porquanto operações neutras de realização de capital por sócios através de bem imóvel não estão sujeitas à tributação uma vez que tal transferência tem o condão de fomentar o direito do cidadão de empreender, objetivando a evolução macroeconômica.
A importância na criação de novos empreendimentos se dá com a função social da empresa que, enquanto fonte produtora de renda e geradora de empregos, contribui sobremaneira com a busca do pleno emprego, valorização do trabalho humano, desenvolvimento nacional, erradicação de pobreza e redução de desigualdades, construindo uma sociedade livre, justa e solidária.
A legalidade estrita é respeitada uma vez que o texto constitucional harmonizou a incidência do tributo ITBI aos demais princípios constitucionais e, a nosso ver, não recepcionou o artigo art. 37 do Código Tributário Nacional.
Tratando-se de realização de capital através de bens imóveis em valor equivalente à totalidade das cotas subscritas pelo sócio ora impetrante, ou seja, sem valor de ágio, não está presente o pressuposto de onerosidade da operação, o qual é necessário para, de acordo com o princípio da capacidade contributiva, nascer o direito do Município de cobrar ITBI.
De tal sorte, em razão da neutralidade econômica comprovada, não resta configurada hipótese de incidência de ITBI a realização de capital em empresa, independentemente de seu objeto social, seja ou não atividade imobiliária.
Tributar tal operação seria ofender os princípios da legalidade estrita, capacidade contributiva e livre iniciativa, uma vez que resta cristalino o alcance da imunidade constitucional ao caso em tela.
Vide abaixo trechos do voto do Eminente Ministro Alexandre de Moraes, em sede do RE 796.376/SC (leading case) que corroboram o entendimento suscitado:
“ […]
A CARTA MAGNA de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis. Do teor do inciso I acima, extrai-se que não incide o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica.
[…]
Segundo KIYOSHI HARADA, o que a norma imuniza não é qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica; a norma imunizante diz respeito exclusivamente ao pagamento em bens ou direitos que o sócio faz para integralização do capital social subscrito que pode ocorrer tanto no início da constituição de pessoa jurídica, como também posteriormente por ocasião do aumento do capital (ITBI – Doutrina e prática. São Paulo: Atlas. 2010, p. 85).
[…]
A esse respeito, o já mencionado professor HARADA esclarece que as ressalvas previstas na segunda parte do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 aplicam-se unicamente à hipótese de incorporação de bens decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.
É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I.
[…]
Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I – “ nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” – revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão “nesses casos” não alcança o “outro caso” referido na primeira oração do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF.
[…]
Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito.”
- Conclusão.
Concluímos, portanto, que o entendimento de que o fato jurídico de realização de capital social de sociedade empresária através de bem imóvel não é fato jurídico tributário, em outras palavras, não configura fato gerador do tributo de competência dos municípios, ITBI.
O reconhecimento da interpretação correta do dispositivo constitucional pela Suprema Corte, consagra o entendimento que deve prevalecer, embora o entendimento recorrente que vinha sendo adotado tanto pelo fisco municipal quanto pelos contribuintes, a partir da interpretação correta da Carta Magna, é de rigor a sua aplicação.
Com este “novo” entendimento, evidencia-se o respeito aos princípios constitucionais da capacidade contributiva, legalidade estrita e livre iniciativa, e vivifica-se nossa jovem Constituição Federal, fortalecendo e impulsionando a criatividade e força econômica e contributiva de nossa sociedade.
RUTE ENDO – OAB/SP 243.127
Sócia administradora, especialista em Direito Imobiliário e Tributário. Com 19 anos de experiência, sua abordagem estratégica e multidisciplinar – que combina profundo conhecimento legal, otimização fiscal e gestão de ativos – a torna referência para assessorar pessoas físicas proprietárias de imóveis e investidores na maximização de seus negócios e investimentos imobiliários.
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